“Liberdade de imprensa: uma lição inglesa na Coreia do Norte
Um repórter da prestigiada BBC integrou uma delegação de alunos da prestigiada London School of Economics (LSE), numa visita à Coreia do Norte. Repito “prestigiada” para deixar claro que estamos perante duas instituições respeitadas. Ou seja, a polémica que aqui trato está depurada do lixo que exista na comunicação social e na academia. E isso ajuda à clareza do que está em causa.
Os estudantes da LSE sabiam da presença do jornalista e a maioria concordou, diz a BBC. Um aluno garantiu que, quando embarcaram para Pyongyang os alunos não sabiam que ali ia um repórter e julgavam que John Sweeney trabalhava na LSE. Desconheciam a presença de repórteres de imagem e ele, quando se apresentou à autoridades norte-coreanas deu um dado falso: disse que era estudante de doutoramento da LSE.
O jornalista fez uma reportagem para o programa Panorama e, agora, a BBC está a ser pressionada para não a transmitir e apresentar desculpas à LSE. Tendo sido jornalista por muitos anos, sou muito sensível à oportunidade de entrar num país vedado aos olhares externos e relatar o que se passa naquela brutal ditadura. Um assunto especialmente importante numa altura em que a retórica belicista cria um ambiente escaldante naquela parte do mundo. O interesse público e jornalístico é evidente e a legitimidade para entrar no País usando um disfarce indiscutível. Mas sou obrigado a reconhecer, no entanto, que a LSE tem toda a razão.
Sim, a BBC pôs em risco a segurança dos alunos da LSE. Mas o mais grave nem é isso. Ao apresentar-se como estudante de doutoramento, sem autorização da instituição (ou mesmo que a tivesse), o jornalista pôs em risco todas as futuras delegações de todas as universidades que se desloquem a todas as ditaduras.
Várias vezes, agentes de serviços de informação usaram como disfarce a função de jornalistas. Independentemente da bondade dos seus atos, o que fizeram pôs em risco centenas de jornalistas a operar em cenário de guerra ou em ditaduras, retirando a legitimidade de lhes dar um tratamento excepcional. Da mesma forma, a mistura entre atividades humanitárias e militares põe em perigo os que trabalham em ONG em países em conflito. Ou a utilização de ambulâncias para funções militares põe em perigo todos os profissionais de saúde que trabalhem em zonas de conflito e os doentes que estes tentem socorrer. Ou seja, a utilização de um tratamento especial dado a outros para objetivos próprios, mesmo que seja compreensível em cada momento específico, cria uma confusão entre funções que pode ser perigosa não apenas para aqueles que são usados naquele momento, mas para todos os que desempenhem atividades similares noutros lugares.
Resumindo: sendo justificável pelo interesse público e sendo, ao limite, aceitável do ponto de vista deontológico, o comportamento da BBC foi irresponsável e desleal. E nada mudaria se a London School of Economics tivesse autorizado tal disfarce. Porque estaria, ela própria, a pôr em risco qualquer estudante que em qualquer parte do mundo se desloque a um regime com esta natureza e se apresente como mero doutorando em busca de informação. Dificultando assim o trabalho académico sobre este tipo de países. E o trabalho académico não merece menor respeito e proteção do que o trabalho jornalístico. Assim como nenhum profissional da comunicação social aceita que alguém se faça passar por jornalista para recolher informações, os restantes profissionais de outras atividades têm direito ao mesmo respeito.
A única importância desta história tem a ver com a forma como os jornalistas, mesmo os mais sérios, olham para o seu próprio estatuto. Sim, ele é a vários títulos excecional: pelo serviço que presta a um valor fundamental para as democracias – o direito à informação – e pelos riscos que comporta. Mas essa excecionalidade não esgota os direitos de outros. É por isso que, mesmo quando estão em causa informações da máxima importância, não se tolera que a comunicação social se socorra de escutas telefónicas ou da violação de correspondência para as recolher. Porque o direito à informação não é o único direito que as democracias devem proteger. Neste caso, o direito à investigação académica e à segurança de quem a faz não pode ser subalternizado. Nem mesmo quando quem faz a investigação o faz para o excelente programa Panorama da não menos excelente BBC.
Claro que adorava que o estado da arte no debate sobre a comunicação social e os seus limites estivesse neste ponto em Portugal. Aqui, tolera-se com a mesma bonomia que os tribunais tentem usar jornalistas para, violando o seu dever de confidencialidade, recolher informações e que jornalistas menos escrupulosos levem a cabo assassinatos cívicos sem quaisquer consequências profissionais. Que se use abuse do “direito ao bom nome” para tentar instaurar uma censura encapotada e que boatos sem confirmação sejam notícia nunca desmentida.
Não faltam abusos da comunicação social (de que o “News of the World” foi apenas o caso mais grotesco) e tentativas de censura no Reino Unido. Mas, com décadas de jornalismo livre, o difícil equilíbrio entre liberdade de imprensa e restantes direitos cívicos e valores fundamentais são por lá assunto de debate apaixonado. Por cá, ainda vivemos no reino da arbitrariedade, onde juízes tomam decisões sem qualquer coerência entre si, ao sabor do seu livre entendimento do que é o Estado Democrático, e os jornalistas são incapazes de criar uma verdadeira instância de autorregulação, permitindo que o poder político, através da ERC, tome conta dessas funções. E aceitam, sem violar de forma decidida uma imposição inaceitável numa democracia, assistir a conferências organizadas pelo governo, onde não podem citar os participantes. Aceitam blackouts seletivos de clubes de futebol. São reverentes com empresários, raramente lhes fazendo perguntas incómodas, enquanto fotografam, sem receios, os ecrãs dos computadores de deputados. O único critério vigente parece ser o da lei do mais forte.
Este debate entre instituições académicas e de media sérias no Reino Unido seria uma quase aberração em Portugal. Estamos, nesta matéria, na pré-história da comunicação social. Não é difícil de perceber: temos menos de 40 anos de liberdade de imprensa. Ainda nos faltam umas décadas de abusos de parte a parte.”